A reunião do G-20 em Londres está sendo saudada com alívio.
Finalmente os líderes mundiais começam a acertar o passo. Foi preciso
uma crise dessa gravidade para despertá-los para a natureza da questão:
há um descompasso no plano mundial entre as formas institucionais e o
mercado. Disso há muito se sabia. Nos anos 90, quando a globalização
financeira começara a se fazer sentir com força, o problema já se
colocava: a falta de regras internacionais mais objetivas complicava a
situação de vários países que, eventualmente, nada tinham que ver com o
estopim da crise. Desde então não faltaram vozes isoladas a clamar por
uma reordenação global, não só do mercado, mas das instituições
financeiras e da sua regulação.
Clamava-se, ainda, por uma reordenação comercial (vejam-se os
esforços de Doha), pela reordenação das políticas de meio ambiente (os
acordos de Kyoto), pela reordenação bélica (com o empenho nos tratados
de não proliferação atômica ou no controle dos mísseis), pela reforma
do Conselho de Segurança, e assim por diante. Até mesmo os esforços
globais de redução da pobreza e de melhoria da qualidade de vida foram
objetos dos acordos que resultaram nos Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio, aprovados pela ONU em 2000.
Tudo isso caminhou a passos de tartaruga porque não é fácil
complementar as ações que se devem dar no plano nacional com as que são
de outra natureza e dependem de regras e decisões globais. Desde Kant
se sabe que a Paz Universal requer um Direito Universal. Por que as
finanças globalizadas escapariam dessa condição? Mas também se sabe que
o fracasso da Liga das Nações, se não foi responsável pela 2ª Grande
Guerra, abriu espaço para que a crise de 1929 despedaçasse o mundo em
isolacionismos protecionistas e, no final, em guerras de conquista. Foi
pela visão generosa de um mundo de paz e prosperidade que Roosevelt –
como se vê em sua correspondência com Stalin durante a guerra – cedeu
tanto aos soviéticos. Queria construir a ONU mantendo a União Soviética
comprometida com a ordem global. Apesar da guerra fria e de tantos
avatares mais, a ONU evitou uma guerra mundial.
Hoje, diante da impossibilidade de os Estados nacionais controlarem
a crise financeira, o revigoramento da ordem global começa a ganhar
fôlego. Até aqui, com a impotência das instituições de Bretton Woods
para enfrentar a maré de papéis tóxicos espalhados pelo mundo, o que
vimos foi o banco central dos EUA e o Tesouro americano espalhando
recursos aos trilhões de dólares, tentando irrigar o sistema bancário.
Os resultados, entretanto, foram magros até agora. O mercado permanece
amortecido pelo temor dos bancos em fazer novos empréstimos e pela
preferência dos eventuais tomadores em se resguardarem. Só deseja
empréstimo quem já está quebrado.
Os europeus, ingleses à frente, mais prudentes, injetaram capital
nos bancos e assumiram parcialmente o seu controle. Consequentemente,
surgiu um cisma que poderia paralisar as decisões em Londres: de um
lado, a Europa tratando de impedir que os estímulos fiscais arruínem o
futuro de sua moeda e, do outro, os americanos, donos da mágica de
produzir dinheiro lastreado na confiança no governo e em sua economia,
provendo liquidez e aumentando os déficits sem muita preocupação com
equilíbrios fiscais.
Entretanto, como o mundo agora é mais plano, os chineses deram o
grito de alarma pela boca do primeiro-ministro: e se o dólar
desvalorizar? Por certo, o problema hoje não é a inflação, mas a
deflação; as taxas de juros americanas podem se manter rentes a zero.
Mas será assim amanhã, se a dívida crescer a tal ponto que coloque em
questão, ao longo do tempo, a capacidade de recuperação dos orçamentos
americanos? Foi significativo ver que no G-20 se falou de uma cesta de
moedas que sirva de reserva e houve a decisão de aumentar o capital do
FMI e até mesmo de utilizar os direitos especiais de saque, uma espécie
de dinheiro internacional próprio do FMI. Noutros termos: há no
horizonte distante o que Keynes previra e desejava, a formação de uma
Autoridade Monetária Central. Não será o Banco Central Europeu uma
antevisão do que poderá ocorrer em décadas adiante? O Conselho de
Estabilidade Financeira não poderá exercer papel efetivo na coordenação
das políticas e em seu controle?
Reordenação mais profunda do sistema financeiro global implicaria um
novo arranjo político, do qual estamos distantes. Mas assim como o
unilateralismo dos neoconservadores e do governo Bush esticou a corda
nos dois lados, invadindo países e dando licença aos mercados para
fazer o que quisessem sem consultar ninguém, a atitude do governo Obama
(Hillary Clinton falando até de incluir os talibãs “moderados” (sic) na
mesa de negociações) prenuncia algo melhor para o mundo.
Gordon Brown foi perspicaz e procurou os emergentes para aumentar
suas chances de liderança, apostando em mais regulamentação. Isso, com
maior legitimidade, ampliando-se o número de atores que decidem, talvez
seja a fórmula para se falar com mais seriedade em um outro e melhor
mundo. George Soros, voz dissidente e clarividente nas finanças,
colocou a outra condição para um ponto de partida positivo: será
necessário prover muito dinheiro para evitar tragédias maiores nos
países pobres e em algumas economias emergentes. O G-20 falou de US$ 1
trilhão. É um começo.
Os ativos globais perderam de US$ 30 trilhões a US$ 50 trilhões! Os
socorros de todo tipo, incluindo estímulos fiscais, devem roçar os US$
2 trilhões, as promessas vão aos US$ 5 trilhões. Em Londres os líderes
esperam que lá pelo fim de 2010 a economia flua outra vez. Tomara. Isso
se houver restabelecimento da confiança e do crédito e avanços no
reordenamento político e financeiro do mundo. Se, entretanto, houver
fracasso, o protecionismo e o nacionalismo bélicos podem voltar à cena.
Espero, por isso, que a reunião do G-20 não se resuma a uma
oportunidade fotográfica.
Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República